Divina providência
Guardo as minhas primeiras percepções de infância com um especial encanto. Lembro-me de, ainda muito pequena, mesmo muito pequena, na casa dos avós, hoje casa dos pais, sentir que existia algo maior, algo muito maior. Não sabia o que era e ninguém tinha resposta para as minhas questões. Questões que só sabiam dizer não serem normais numa criança pequena. E eu calava-me e com isso aprendi a não questionar. A solução, mais crescida e ao longo da vida foi procurar nos livros respostas para tamanhas e estranhas perguntas. Talvez por isso aos cinco anos já soubesse ler. Andava sempre descalça. Subia pelas oliveiras, as mesmas de onde ainda tiramos azeite. No topo delas ou deitada sobre a caruma na clareira dos pinheiros ficava horas a fio a contemplar o céu, até nascerem muitas vezes as primeiras estrelas. E a mãe ralhava para que eu me calçasse e viesse para cima e o meu avô, eterno que me amava incondicionalmente acobertava os meus devaneios. Lá pequena, naquela casa fiz o ensaio das primeiras sensações. No alpendre falava para um público quieto de laranjeiras e outras árvores. E, elas quietas limitavam-se a abanar as folhas e eu agradecia. Quando penso nisto, ou os adultos da casa o mencionam, sinto um misto de vontade de rir, borboletas na barriga e as famosas lágrimas de inspiração a bailar. Ontem, ao fim do dia fiz uma coisa que faço muitas vezes. Descalcei-me e de sapatos na mão fui dar um beijo ao pai, perdido na horta dele. Passei pelas oliveiras. Mirei os pinheiros. E subi para me sentar no alpendre. A casa mudou muito em quase quarenta anos. Permanece a essência e as laranjeiras. Fiquei ali um bocado, um bom bocado de tempo. A mente percorreu o tempo. Hoje, sei o nome daquilo que na altura só achava que era maior, muito maior. Aprendi e experiencio a cada segundo de vida aquilo a que se chama de divina providência, a fonte da vida e de tudo o que existe para além dela. E sob a protecção deste bem maior encontro as respostas que preciso para que a minha lista de amor permaneça sempre actualizada. E a gratidão serena acontece.